quarta-feira, 2 de maio de 2012

Entre o nascer e o morrer...


O jantar em família costumava ser, para ela, o momento de maior alegria, quando se sentia mais em casa. Era como se, naquela mesa, o mundo a acolhesse. Era como se tivesse um motivo de ser, um lugar no cosmos, quando estava na sua cadeira e todos os outros estavam nas suas.
 Ocorre que, de um tempo para cá, a jovem anda alheia a esse mundo. Nem ela sabe ao certo o que aconteceu, mas não consegue mais sentar-se com seus pais e irmãos, rezar de olhinhos fechados e simplesmente ser acolhida pela cadeira. Noite após noite, senta-se no lugar que sempre lhe pertenceu. Sente, no entanto, não pertencer àquele lugar. A ausência não é percebida. Todos agem com naturalidade, tratando dos seus importantíssimos assuntos corriqueiros. Ninguém nota o lugar vazio na mesa do jantar.
...você viu o cabelo novo da vizinha?...
É estranho como tudo parece estar errado no mundo ou como ela parece estar errada no mundo. É difícil ser como uma engrenagem sem encaixe, como um parafuso solto.
...a taxa de juros está mais alta que nunca!...
É indigesto estar à mesa e não gostar do que está posto. É doentio como as pessoas empurram suas imbecilidades goela abaixo, como um banquete de carnes podres.
... ela se casou com um cara divorciado!...
É terrível olhar para a vida e encontrar a insensatez, enxergar a pequenez, ver que tudo funciona perfeitamente pela concatenação de absurdos.
...o padre novo da paróquia nem sabe falar direito!...
É insano saber que nada daquilo importa. É maluco perceber que está cercada pela cretinice. É pirado sonhar quando está sentada à mesa de jantar.
...me passa o suco, por favor?...
É insuportável! Como pode viver sabendo que não é parte daquilo? Como pode simplesmente ser mais uma nesse mundo sujo, desigual, monstruoso? Como pode tomar parte disso?
... como é que é, vai me passar esse suco ou não?
O grito do pai veio como um vento gelado esbofeteando seu rosto. Acordou de um devaneio. Passou o suco e engoliu seco. Comeu o bife que lhe cabia. E a Terra continuou a girar.  

3 comentários:

Supremus_Mattos disse...

Belo texto senhor José...Você vai começar a ser um indicativo de boas leituras para minhas pessoas próximas.
Curioso o modo como abordou os dois ambientes da estória (a familia e a mente da jovem)terminando com aquele velho desfecho do silêncio sem qualquer atitude de rebeldia.

José disse...

Pode indicar, cara. Por favor. Sua leitura é boa, minha escrita eu não sei. Ahahahaha. Ah, quando quiser colaborar com o blog, sinta-se à vontade.

Aroldo Soares Duprat disse...

ótimo texto, a linguagem corre exatamente no mesmo rítmo que a o devaneio da personagem, que é cortado abruptamente pela normalidade do mundo!